Sobre Ayrton Salvanini…
Esqueci de contar um acontecimento importante, ocorrido durante o tempo em que trabalhei com o Grupo RIA. Houve um intervalo, em que me afastei para desenvolver um trabalho com um grande ator, Ayrton Salvanini, que fez uma escolha interessante, criticada por muitos, mas ele é quem ganha mais com isso. Passou a montar peças para apresentar nas escolas sem intermediários.
Antes de falar do trabalho com Ayrton no ano 2000, ou 1999, eu preciso contar como conheci esse ator. Ele me procurou em 1981, quando eu lecionava no curso Compromisso Vestibulares, na Consolação. Certo dia, fui procurado por ele, que se apresentou e me revelou o seu projeto.
− Eu estou pensando em decorar e vender para escolas o Sermão da Sexagésima, do padre Antônio Vieira. Creio que deve ser do interesse dos estudantes de literatura e dos professores também, o senhor não acha?
Eu joguei um balde de água fria nele. Disse-lhe que no mundo atual, daquele fim de século, a juventude não teria interesse por sermões. Aconselhei-o a procurar outro texto. Ainda bem que ele não me deu ouvidos. Decorou, montou, e foi apresentar para mim e para meus alunos. Foi maravilhoso. Eu já vi cinco vezes e não me canso. Foi a peça que mais lhe deu dinheiro até hoje. Ele não parou nessa, foi aumentando o número de peças, principalmente monólogos. Montou a Apologia de Sócrates, Bicho do Mato, 22, Discursos de Hitler, Fernando Pessoa. Dessa eu me lembro mais, não só por ter visto várias vezes, mas também porque auxiliei na procura de textos e por ter bebido muito uísque enquanto trabalhávamos.
Eu sempre sugeria ao Ayrton que fizéssemos algo juntos, mas ele declinava do convite. Eu não conseguia entender o motivo. Acabei concluindo que era porque gostava de trabalhar sozinho. Quando eu estava no elenco do Brás Cubas, ele foi ver a peça. Depois da apresentação, ele me elogiou e pediu para passar na casa dele, dizendo que estava com ideia de um trabalho comigo. Então concluí que, antes, ele duvidava do meu potencial, mas ao me ver trabalhando, mudou de opinião.
Quando nos reunimos, ele expôs o plano; montar uma peça que seria intitulada Travessia, construída a partir de três livros da lista da FUVEST. Eu adaptaria os cantos III e IV de Os Lusíadas, ele escolheria alguns poemas de Libertinagem e nós dois faríamos, a partir de uma seleção de cenas de Morte e Vida Severina, todos os personagens. Imagine só a loucura! Eu achei absurdo, mas me lembrando do sermão do Vieira, fiquei quieto e me deixei levar. Ainda bem, porque a experiência foi maravilhosa e o Ayrton também. Dirigiu-me com economia e competência, o espetáculo ficou pronto rapidamente e pudemos nos apresentar em várias cidades. A melhor lembrança que tenho é de uma apresentação no Teatro Municipal de Osasco. Lotado, lotadíssimo! Aquela molecada toda falando, gritando. Havia alunos da última série do primário, apesar de termos recomendado que só levassem estudantes do Ensino Médio. O Ayrton vendo minha ansiedade, aconselhou:
− Olha, é muito comum, em situações como hoje, o ator correr com o texto para se ver logo livre da situação. Não caia nesse erro. Hoje, pelo contrário, faça tudo mais devagar ainda, fale pausadamente, mas sempre de olho firme neles, não deixe de olhar para eles. Devagar!
E foi o que fiz, com o maior cuidado, e, para minha surpresa, quando terminei a última fala do Velho do Restelo − “mas contigo se acabe o nome e glória! ” − a plateia toda aplaudiu freneticamente. Obrigado Ayrton.
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